No Brasil, discute-se política como se fosse futebol – e todo mundo sai perdendo

O livro “Maracanazo”, de Arthur Dapieve, conta a história de jovens de discutem política como torcedores apaixonados

No dia 18 de junho de 2014, uma quarta-feira, Victor, Guillermo e Juan Pablo, três turistas madrilenhos, foram ao Maracanã assistir ao jogo entre Espanha e Chile, na primeira fase da Copa do Mundo. Campeã em 2010, na África do Sul, La Roja (apelido carinhoso da seleção espanhola) decepcionou nos gramados brasileiros. Em Salvador, sofreu cinco gols da seleção holandesa. No Maracanã, perdeu do Chile por 2 a 0. Foi um verdadeiro maracanazo (assim mesmo, com “z”, como preferem os espanhóis). Antes do início do jogo, Victor foi beijado por uma brasileira disfarçada com uma camisa do Chile. Beijá-lo foi a maneira que Violeta encontrou para esconder o rosto e não aparecer no telão do estádio. Ninguém podia saber que ela estava no Maracanã. Todos os amigos dela estavam do lado de fora do estádio, protestando contra a realização da Copa do Mundo no Brasil.

Violeta é de esquerda. Gosta de sociologia e é filha de chilenos que partiram para o exílio depois do golpe militar que derrubou o governo socialista de Salvador Allende (1908-1973). Victor é de direita. Torce para o Real Madrid, é católico e pertence a uma família de médicos que apoiou a ditadura fascista do general Francisco Franco (1892-1975). Durante os 90 minutos da partida, enquanto a ex-colônia e a ex-metrópole se enfrentavam sob o sol carioca, direita e esquerda se digladiavam na arquibancada. Victor e Violeta não prestavam atenção nos dribles dos jogadores e discutiam política como se fosse futebol: aos gritos, ignorando argumentos racionais e tratando um ao outro como adversário.

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Victor e Violeta são personagens de ficção. Eles habitam um dos contos do livro Maracanazo e outras histórias (Alfaguara, 160 páginas, R$ 39,90), de Arthur Dapieve. Mas eles poderiam ser seus amigos nas redes sociais. A discussão que o livro descreve soa familiar. Nos estádios ou nas redes sociais, o debate político anda cada vez mais parecido com uma discussão sobre qual time tem mais chances de vencer o campeonato. “Futebol e política mobilizam radicalmente as identidades pessoais e sociais dos brasileiros”, afirma o antropólogo Roberto DaMatta. “A discussão sobre futebol começa com uma piada, uma gozação porque o Vasco perdeu, mas, aí, o cara revida falando de uma derrota do Flamengo. Na política, é o mesmo tipo de retórica.” Dapieve é mais pessimista. “Quando falamos de futebol, ao menos respeitamos a escolha alheia e não queremos ver o outro calado ou exterminado”, diz.

No Brasil, direita e esquerda parecem dois times que se enfrentam num jogo de futebol. Para vencer a partida, ambos abusam das rasteiras, das faltas e da mão na bola. Nas redes sociais, uma versão pós-moderna e mais confortável das arquibancadas, as torcidas deliram. Nas ruas, os partidários do time da direita vestem as camisas da Seleção e parecem ignorar que o brasão que carregam no peito é da CBF, a Confederação Brasileira de Futebol, acusada de corrupção. O time da esquerda também se comporta como uma torcida organizada. No ano passado, tentou reeditar a luta de classes por meio da defesa da Copa. Quem criticava os gastos públicos com o Mundial era acusado de fazer o jogo da direita.

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Em 2014, o Brasil viveu a eleição presidencial mais virulenta e polarizada desde a redemocratização do país. Petistas e tucanos se atacaram no horário eleitoral, nas ruas e nas redes sociais. Argumentos racionais foram chutados para fora do campo. Durante a Copa, o debate político se transformou num grande Fla x Flu. Logo na abertura do Mundial, a presidente Dilma Rousseff recebeu um tratamento tradicionalmente reservado aos juízes e suas mães. Verde-amarela, a multidão gritava: “Ei, Dilma…”. O leitor há de se lembrar do resto. Em outubro, poucos dias antes do segundo turno, militantes do PT e do PSDB trocaram socos e pontapés no centro de São Paulo. Tudo começou quando tucanos jogaram uma bandeira de Aécio Neves nos petistas. Uma torcida provocada pela camisa do adversário talvez se comportasse com mais civilidade.

Cerimonia de abertura da Copa do Mundo na Arena Corinthians, em Itaquera (Foto: Danilo Verpa/Folhapress)

O petista Eduardo Suplicy, ex-senador e atual secretário de Direitos Humanos da prefeitura de São Paulo, sentiu a fúria dos militantes que distribuem caneladas. Em outubro, foi hostilizado numa livraria. Como um palmeirense perdido no meio da torcida do Corinthians, foi cercado por manifestantes que gritavam: “vergonha” e “cubano”. Teve até um grito de guerra que escorregou na rima: “Chora, petista, bolivariano, a roubalheira está acabando”. Antes desse episódio, Suplicy havia sido hostilizado pelos próprios petistas. Num dia de fúria, enxovalharam o então senador por apoiar a blogueira Yoani Sánchez, crítica da ditadura castrista em Cuba.

O último Fla x Flu que tomou conta das redes sociais envolve os ataques terroristas ocorridos em Paris e o rompimento das barragens em Mariana. Houve quem se incomodasse com a profusão de mensagens de solidariedade às vítimas do Estado Islâmico, enquanto há gente que sofre aqui no Brasil. Rapidamente, dois times se formaram: um lamentava os atentados de Paris e o outro se solidarizava com a população de Mariana. Solidarizar-se com as vítimas de ambas as tragédias parecia proibido nas redes sociais, que colocaram as dores alheias numa balança para conferir qual merecia mais condolências.

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Protestar é um direito inalienável do cidadão, mas irracionalidade e xingamentos não são a expressão mais virtuosa do jogo democrático. “Em vez de gerar novas e melhores bases de contestação, essas manifestações reforçaram a dimensão mais grosseira e superficial de um antagonismo que serviu apenas para dar vazão a pulsões reprimidas e ressentidas, alimentando a espiral da polarização”, afirma o cientista político Marco Aurélio Nogueira. Essas discussões irracionais saíram dos estádios para as redes sociais, onde reina a polarização vazia e torcedores da esquerda e da direita travam violentos embates verbais. Nesse campo, não há espaço para as reflexões de jogadores moderados. Opiniões exaltadas são mais compartilhadas e premiadas com curtidas. “Uma reflexão ponderada vai impactar somente seu grupo de amigos, mas não vai gerar engajamento”, afirma Manoel Fernandes, diretor da Bites, uma consultoria de análise de dados no ambiente digital.

Mensagens de ódio podem ganhar mais cliques, mas não levam a lugar nenhum. “Graças à proliferação das redes, a sua lógica imediatista e às pulsões que instigam, o debate público ficou ainda mais travado, embora tenha se ampliado. Perdeu qualidade”, diz Nogueira. “Usar de modo inteligente as redes significa usá-las politicamente, ou seja, com a perspectiva de criar áreas de consenso e de produção de vida coletiva.”

Em “Maracanazo”, o conto, as discussões dos personagens se apoiam em argumentos que remetem à histeria das torcidas das redes sociais. Victor, o direitista, não gosta de igrejas modernas projetadas por arquitetos comunistas. Por trás da arquitetura, haveria “uma mensagem subliminar extremamente perigosa para a fé”. Violeta, a esquerdista, não gosta da língua inglesa nem de canções “pequeno-burguesas”. É melhor nem pensar no tipo de mensagem que os dois compartilhariam na internet.

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Victor e Violeta são estudantes universitários mal saídos da adolescência e imaturos. A democracia brasileira também é jovem, mas já passou dos 30 anos. Está naquela fase em que é preciso olhar para o futuro, traçar planos e reajustar as prioridades. É hora de trocar os gritos adolescentes e os xingamentos por discussões adultas e maduras. Assim como o futebol, a política também mobiliza afetos e paixões, mas não precisa turvar as ideias. Quando a arena política se transforma num jogo cheio de faltas, no qual todo mundo pisa na bola, não pode haver vencedores.

Fonte: EpocaOnLine

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